quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Os Senhores do Orum, por Nisso Souza

Toda religião tem seus mitos. Sem eles, ela não sobreviveriam. Como mitos, são carregados no fantástico e por estarem no patamar do extraordinário sobrevivem a tantas mudanças de tempo, civilizações, revoluções... Estão lá para explicar o distante, o inacreditável. No Candomblé, religião de raiz africana, os mitos como todas as outras religiões são múltiplos. Mas cada Orixá possui versões diferentes a depender da nação, do lugar onde esteja sendo cultuado, do tempo, da missão dele no momento... Mitos/ lendas servem para arrumar esses serem enérgicos dentro da nossa cabeça, ainda pequena para tanto poder.
E o design Nisso Souza escolhe mais uma história contada para propagar os Orixás como tema de sua HQ virtual Os Senhores do Orum. Nisso colocou as mãos na massa e assina roteiro, desenhos, arte final e cor, ou seja carrega nas costas a responsabilidade de contar uma das muitas histórias dos deuses africanos. Nesse primeiro volume (em projeto com total de 3), Nanã é escolhida para ser a personagem chave da trama.
No primeiro capítulo, Ogum chega a terra da senhora das águas plácidas para invadi-la, como fez com tantas outras o Orixá guerreiro. Nessa primeira parte a revista se desenvolve através do confronto entre Ogum e Nanã protegendo sua terra. Logo no primeiro capítulo, um artifício inteligente do artista e muito simples também é evidenciado, a arte da HQ é toda em preto e branco, mas nos momentos chave de personagens ou histórias, a página fica colorida (sim, isso já foi usado, até em filme... O Mágico de Oz...), mas a forma como o artista faz, escolhendo os momentos chave da trama, torna a experiência bastante agradável. Nem sempre o momento de balanço na história é escolhido como momento para destaque, vemos a sensibilidade do artista que escolhe partes diferentes do esperado como “pontos chave”
No segundo capítulo, Ewa, a filha de Nanã, descobre que os homens de seu reino matam para desposa-la e como Xangô aparece em seu caminho para acabar com seu sofrimento. Iansã, a quem Xangô não consegue escapar, entra no terceiro e último capítulo, sendo o grande “empecilho” entre o amor de Ewa e o deus da justiça. O ultimo capítulo mostra o sacrifício de Ewa para o bem de todos no seu reino. É bom você mesmo descobrir as reviravoltas da história, caro leitor. Afinal de contas, contar tudo estraga a experiência.
Os Senhores de Orum tem um traço simples. Quadrinho algum aqui tem rebuscamento exagerado. O traço é direto e preciso. Mas muito caprichado quando a história requer erotismo. Aliás, o erotismo é um ponto forte quando o Candomblé é retratado por artistas de diversas áreas... Aqui não é diferente. E é um fator clichê na história. Somos cercados por uma cultura cristã e vemos no Candomblé outro sentido para todo o moralismo da Igreja Católica e Evangélica... Alguns artistas tomam cuidados, outros exageram na mão. Nisso fica no meio termo. Se exagera no começo – a cena do estupro de Nanã – acerta o tom precisamente no momento em que Ewa conhece Xangô. O texto, no começo é grandiloquente, faltou humanidade para retratar Nanã e Ogum, mas com o passar das páginas o roteiro fica mais fluido e o texto mais solto, não deixando de ser simples e direto como o traço da revista.

Para perpetuação de uma crença, da fé, do divino de um povo é preciso sim a assimilação das lendas dessa fé em outros meios além dos tradicionais. O cristianismo, não é de hoje, usou o cinema, o teatro, livros e também os HQ para reverberar suas ideias e seus ensinamentos. Apesar de essa ser mais uma lenda em meio a tantas no Candomblé, a história é bem contada por Nisso, é gostosa de ler e surpreende em alguns pontos. Que venha a segunda e a terceira parte das historias africanas escolhidas, pois o resultado da primeira anima.

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domingo, 9 de novembro de 2014

A Comida de Nzinga, por Rita Assemany

Fotos: Cleiton Lima

Assisti pela primeira vez A Comida de Nzinga na sua primeira temporada. No antigo Teatro XVIII, junto ao renascimento do Teatro Negro em Salvador. A peça me chamou atenção por vários motivos. Primeiro pelo conteúdo, tratando de uma rainha africana com influencia direta aqui no Brasil. Segundo pelo elenco jovem e vigoroso. Terceiro por ser uma peça onde o coro NÃO é feito para enfeitar, ou mais um personagem da peça, o coro É a peça. Quarto por a peça visualmente ser linda e simples. E quinto e último... A cena das batalhas feitas em sapateado. Tive vontade na época de gritar... e gritei no teatro! Era fantástico ver tudo.
A peça revolucionou pelo seu conteúdo e por ser um projeto com atores jovens que falava para todos. Era uma peça sobre o passado, de forma jovem, distribuindo grande energia pelo palco.
Sete anos depois, Nzinga retorna com reformulação do elenco e parte da equipe técnica. Passando pelos teatros da cidade em uma turnê que fez os 4 cantos de Salvador ver a história da Rainha do Ndongo. Estão lá o texto de Aninha Franco e Marcos Dias, que mescla o tom histórico com sua visão atual dos dilemas da mulher e também sobre racismo. A direção de Rita Assemany que mantém os dois personagens principais da peça (Nzinga e o Coro) unidos e fortes. A voz de Virginia Rodrigues em off belíssima como sempre. As coreógrafas Cibele Brandão (sapateado) e Ceiça do Amor Divino (preparação corporal e coreografias) que executam novamente um ótimo trabalho. O fabuloso e colorido figurino de Miguel Carvalho e o cenário de Hamilton Alves simples e com impacto impressionante. E é claro Clara Paixão que retorna ao papel título do espetáculo com força e brilho que a personagem precisa. Até quando sorri o movimento é carregado de força!


A reformulação total efetiva desta nova montagem é o coro da peça. Feito por jovens atores, mas quem acompanha a cena teatral de Salvador, já viu cada um deles em outras montagens. Ou seja, são jovens, mas experiência eles tem. Alguns, vasta experiência! Raimundo Moura Leo Santis (Gaiola O Caçador de Solidão), Guilherme Silva (Breve), Bruno Roma (Mar Morto), Daniele Anatólio (Ponto Negro em Tela Branca), Diogo Teixeira (Casulo), Fernanda Silva (Conspiração dos Alfaiates), Josi Acosta (A Conferencia), Kadu Fragoso (Engenho K), Pedro Albuquerque (Domingo No Parque), Miriam Sampaio (Opera do Malandro) e Nadja Occioly carregam o espetáculo narrando com maestria a história da grande rainha.
A experiência de ver A Comida de Nzinga no Espaço Cultural Barroquinha também deve ser ressaltada. O lugar é incrível para o espetáculo, por mais que o cenário pareça compresso no palco pequeno do teatro, a forma do espaço cultural, que é dentro do que foi as ruinas de uma igreja, acrescenta e muito o clima do texto. Principalmente quando Nzinga se “torna portuguesa” e católica. O impacto da história da igreja construída por negros escravizados e uma rainha africana “tornando-se” branca é muito forte. Fora que o espaço restaurado contribui e muito para a cenografia.


Escrito por Aninha Franco e Marcos Dias, o texto de A Comida de Nzinga é ágil. Mistura muito bem as referencias africanas e a baianidade nossa de cada dia em um só lugar. Os autores sabem que a diferença entre África e Bahia é quase nula e que a gente vista lá não é diferente do povo daqui. Apesar disso, o texto escorrega em um ponto: a forma como fala sobre a escravidão de negro para negro. De africano para africano.
Nzinga foi rainha de uma civilização grandiosa, toda civilização grandiosa antiga utilizou da escravidão. O problema é justamente o porque. Em um tempo onde AINDA se discute muito a “contradição” de negros que escravizaram outros negros, os autores, perderam oportunidade enorme de discutir isso pela primeira vez no teatro baiano de forma aprofundada. Digo isso, pois o texto é cheio de correlações entre a visão do passado “pelo passado” e a visão do mesmo por nós que estamos no presente.
Kia Mbandi é citado no texto pois “se aliou aos muzundu português pra trocar seus escravos por cachaça e fumos brasileiros” (Cena 8). Não é explicado no texto o por que isso. Por que um negro dava seu povo negro para outro fazer de escravo? Estamos falando de um texto em que, muito mais que se viva a situação, as personagens narram as histórias. Por que não responder essa pergunta de forma contundente, como o texto responde varias incógnitas na vida da Rainha? Porque foi uma escolha dos autores ué! Mas perderam uma oportunidade única de responder questionamentos como: Por que um negro escravizou outro negro? Por que eles entregavam o povo negro para o povo branco europeu? A escravidão africana compartilhava da mesma ideologia da europeia? Quais as diferenças? De africano para africano existia a coisificação do ser humano como na escravidão europeia?... Nzinga chama o irmão de fraco, logo depois ele não aguenta a força portuguesa indo pedir ajuda a ela e em seguida é relatado que ele ainda escraviza seus irmãos. As intenções dos personagens são históricas e pouco exploradas pelo texto. Fora que ela também é dona de atitudes discutíveis. Pois toda heroina/heroi é composta de contradições e é justamente isso que os humaniza. Nesse ponto o texto coloca os personagens no arquétipo bom/ruim. Desenvolver o tema, seria uma forma de “calar a boca” de muito liberal frustrado que insiste em dizer que escravidão é tudo a mesma coisa e que nós negros também castigamos nosso próprio povo...


E a cena do sapateado onde a batalha de Nzinga vs os Muzundu é mostrada continua impressionante e o ponto chave do espetáculo. Onde elenco se entrega por inteiro. As frases de efeito soltas por Nzinga e a movimentação do elenco... não tem como não se impressionar. Com certeza uma das soluções mais bem feitas do teatro baiano atual. E no tempo onde as soluções dos diretores são resumidas a projeções em telões, ver um teatro analogicamente criativo é um alivio!

Vale a pena ver Nzinga reinar! Junto a ela, reina o público pois aprende, compartilha sentimentos, vê a luta de si mostrada por um outro parecido nos palcos. Vê e sonha! Nzinga tem fome, mas a cada espetáculo nos dá muito que comer!