sábado, 22 de março de 2014

EXU SILE ONÁ TCA - Exu a Boca do Universo por Fernanda Julia

Thiago Romero em foto de divulgação do espetáculo Exu - A Boca do Universo. o Senhor das Ruas em seu território... Foto Jô Stella


Nem só de pano branco e palha da costa vive o Candomblé. Mais uma peça do NATA – Nucleo Afro Brasileiro de Alagoinhas – estreando em Salvador e a certeza que os  universos (sim no plural) das religiões de matriz africana são muito mais incríveis e possíveis que nossa imaginação, a tradição turística e os clichês sobre a estética do Candomblé podem abarcar. Em EXU – A Boca do Universo, a diretora Fernanda Julia, além de contribuir muito para o teatro baiano com sua forma peculiar de enxergar o universo que trata em suas montagens, reinventa de forma singular uma reinvenção marginalizada.
Explico: Exu nasceu na África e lá ele é cultuado em todas as regiões do vasto continente. Com a diáspora negra, acontecendo por conta do mercado escravocrata europeu, ele foi trazido para o Brasil no coração dos negros escravizados. Só, que como todo mundo sabe, estes mesmos negros fizeram algumas/muitas adaptações para sobrevivência de sua religião. Na dança das cadeiras do “sincretismo” religioso brasileiro, onde cada santo “também” é um orixá, Exu ganhou o “presente” em representar o demônio cristão. De geração em geração, esse simbolismo acabou afastando muitos do Senhor dos Caminhos.
O Nata, vem através de sua nova montagem, participar do grupo de ativistas negros (artistas, professores, políticos, religiosos) que lutam contra a intolerância religiosa, reformulando o sentido das religiões de Matriz Africana junto a sociedade e também transformando o imaginário ruim sobre Exu em algo sobre o que ele é de verdade.

O VELHO E O NOVO NATA...

O espetáculo, começa ainda com o sol...

Estão em Exu traços do bom e velho Nata. A diretora Fernanda Julia com o tom megalocenico funcional de sempre. Suas peças são do tamanho das divindades que traz ao palco, é tudo épico e Fernanda está em um grupo seleto de diretores que conseguem controlar a grandiosidade e nunca se perder. O trabalho de grupo também mantém características de gente que cresceu, mas não se perde, basta dar uma passada pelo programa e ver que os atores passeiam por todas as áreas do espetáculo. Parece comum hoje, mas nem sempre dá certo no palco. Estranhei no começo que o “ritual” de deixar as pessoas mais velhas passarem primeiro, para só depois os mais jovens terem seus lugares no teatro não acontecer... Mas é só reparar direito. Há uma parte com cadeiras vermelhas feita especialmente para os anciãos. Fernanda é a ÚNICA diretora que traz este respeito aos mais velhos em suas montagens. Mais uma peça do Nata onde a música tem um papel fundamental. Arrisco-me a dizer que este é o primeiro musical de Fernanda Julia. E é do tipo de musicalidade fluida, os atores não param tudo pra cantar, as canções são falas do espetáculo, dão continuidade a historia, como todo musical que se preze.
Há também em Exu traços de um novo Nata. Um grupo mais seletivo em suas escolhas. Com estética apurada, mantendo um dialogo constante entre artista e publico. O teatro do Nata apesar de tratar muitas vezes de um tema só, é popular, é para a rua e mesmo feito em teatro continua popular. Não um popular maquiado, feito por alternativos com alcunha popularesca, mas algo feito pra mim e para TODOS.
Exu – A Boca do Universo, faz parte da residência do Nata durante o ano de 2013 no Teatro Castro Alves. No mais importante território teatral soteropolitano, este grupo negro, do interior, marca seu conhecimento e sua estética com inúmeros trabalhos expostos durante todo ano. Espetáculos de repertório, inúmeras oficinas, intercambio com a Cia Miolo (SP), leitura dramática, sarau de poesia, experimentos e mostra de filmes, ufa! Com tudo isso, o Nata reinventa também o seu lugar na cena teatral baiana.
Tanto marca a cena teatral na Bahia, que acontece com o grupo algo que vi poucas vezes nos teatros de Salvador. O Nata atrai gente de todos os cantos. Não é o datado publico de teatro de Salvador e região, aquelas mesmas pessoas... Mas sempre quando vejo o Nata no palco reparo em sua plateia. Não tem como não reparar! O grupo traz o publico negro de Salvador (do Axé ou não) para os teatros. Também o publico dos terreiros está presente, sem medo, sem receios, se faz presente, pois sabe que verá algo respeitoso nas apresentações. Só vi isso, essa plateia completamente diferente e sempre com frutos, acontecendo três vezes, desde quando acompanho teatro... Com o público do Bando de Teatro Olodum, com as peças da Cia Baiana de Patifaria e os espetáculos de Fernando Guerreiro, dramáticos ou não. Cada um a seu modo, traz ao teatro, pessoas que nunca viram uma peça ou aquelas que não fazem do teatro uma constante em suas vidas.

A BOCA

A noite cai e uma das mais belas cenas do espetáculo se inicia...

Exu tem um texto ágil, é lírico, mas ao mesmo tempo direto. Muito direto, aliás! Sem rodeios, sem pudores, nada de bla bla bla, manda o recado na lata, com muito bom humor e cheio da ironia baiana das ruas, vielas, afinal de contas estamos falando de Exu. Apesar de tudo ser muito bom e leve (para um Orixá tratado muitas vezes com tanto peso...) a peça tem no corpo dos atores outro tipo de texto. O corpo fala, todos nós sabemos disso, mas nem sempre isso é perceptível para além do processo de ensaio. Nem sempre vira elemento cênico. E nem sempre, quando vira, é percebido pela plateia. Em Exu, corpo é palavra. Mais do que em qualquer outra peça de Fernanda.
Os figurinos de Thiago Romero são um espetáculo a parte. Ele supera seu brilhante trabalho em Ogum Deus e Homem. Ressalto aqui a minha frase inicial. Nada de pano branco, nada de palha da costa, nada de clichê! Tudo é muito COLORIDO! E as cores se casam (friso “se casar” não é combinar... Combinar é tão anos 90 não é? rsrs), cada peça em detalhes incríveis, referencias do Orixá se misturam nos tecidos. Os Exus vestidos por Tiago são belíssimos. Fora isso, um ps: Thiago, que também é ator no espetáculo... feeeeeeeeeeechaaaaaaaaa!!!!! De todos os atores, é o que parece estar mais a vontade no palco. E sobe e desce, rebola, solta olhares maliciosos, incisivos ao publico, seduz e ri. Não é a fechação pela fechação, é simplesmente um ator a vontade com aquilo que apresenta. Na minha opinião é o que encarna o Caminho com mais naturalidade. A cena de Fabíola Julia também impressiona. Não quero adentrar nesta cena, pois é uma grata surpresa durante o espetáculo. Singela sua interpretação sem nada dizer. Lindo demais.
A direção de Fernanda, lírica, solta, sem nenhum vinculo com o realismo, mas respeitando o espaço entre corpo, lúdico e texto. Ela respeita o texto, as imagens que constrói e as palavras recitadas pelos atores se casam de forma prazerosa para quem vê. É bom ver alguém que usa o corpo, se afasta da estética realista, mas respeita as palavras ditas ao publico.
A trilha de Jarbas Bittencourt é um animo. Com letras dele e de Daniel Arcades (co autor do texto e ator tmb do espetáculo) o universo de Exu é elevado em todas as canções. É um musical, o numero de canções é grande, mas em nenhum momento elas enjoam.
Outro ponto é o grupo de atores em si: Exu tem elementos fortíssimos de Teatro Narrativo... E...Não é sempre que vejo atores bons recitando histórias a ponto de prender o público. Pra falar a verdade, nunca mais vi isso... Desde sei lá... Sete Ventos!...
A única coisa que atrapalha é o vento. Um efeito da natureza que o grupo não pode controlar. Em momentos o vento surge como algo maravilhoso, como na cena onde Fabíola Julia se destaca (roendo as unhas para não contar e estragar a surpresa...), mas atrapalha muitos os microfones. Mas acontece com qualquer evento ao ar livre.

ENFIM...

O cenário, com Ele ao centro de tudo


Exu – A Boca do Universo chega ao TCA para revolucionar. O cartaz, gigantesco, disposto, na entrada do teatro, com o nome do Orixá mais marginalizado, enorme para todo mundo no Centro da cidade ver, já é um aviso, naquele espaço não reside um espetáculo qualquer. A nova peça de Fernanda Julia curiosamente é a que mais dialoga com o publico, mesmo essa sendo uma característica forte em seus outros espetáculos. Mas pensando bem, é natural dessa ser a que mais mantém um papo com o publico e faz ele se sentir inteiramente à vontade... Estamos falando de Exu ora! O Senhor dos Caminhos, o que protege as ruas, o primeiro, o que viu o homem nascer, ser criado, acontecer, ele é Vida... E é o que está perto dos homens. Extremamente natural nós homens, depois de nos afastarmos das más visões, nos acostumarmos com suas historias, sorrir, se emocionar... Pois Exu está em mim. Está em você!
Foto: Andrea Magnoni


foto: Andrea Magnoni





terça-feira, 11 de março de 2014

16 Razões Para VER 12 Anos de Escravidão!...



Evitar o longa de Steve Mcqueen? Nunca na vida. Esqueça o artigo do "jornalista" que criticou o filme e suas 16 razões para não ver o filme, mesmo que ele não viu o filme... O ganhador do Oscar deste ano de Melhor Filme, é com certeza um divisor de águas em inúmeros quesitos... Ah sim, EU VI O FILME!!!!...

1)      Steve Mcqueen: diretor e produtor do longa, ele comanda sua produção com mão de ferro. Sim, você vai ver sua assinatura em cada parte do filme. O negão filma de forma muito prática e direta. Estão lá seus planos longos, a solidão dos seus personagens, mostra violência sem ser gratuito, crueldade por crueldade não existe neste filme. A cena do açoite de Patsey, filmado em plano sequencia é simplesmente fenomenal.

2)      Historicamente é um filme impecável: está tudo no lugar. EUA beirando Guerra Civil, negros livres no Norte e escravizados no Sul, os grandiosos sobrados do sul rural dos EUA, a sujeira do submundo negro escravo vs a limpeza estéril dos brancos senhores das leis, a política que ao mesmo tempo livra certa parte da população negra, mas marginaliza uma parte ainda maior...

3)      O sistema escravocrata na tela sem rodeios: Negros de diferentes tonalidades eram separados. Os negros com pele mais escura e que aos olhos dos brancos, mais parecidos com animais, fazem o trabalho pesado. Enquanto os com tez mais clara e “mais parecidos” com seus senhores estão junto a eles, os servindo. A forma como a violência silenciosa era praticada dentro da senzala, já que o sistema escravocrata tinha um regime de “eu por mim, cada um por si”, quase que não existe sentimento de comunidade e sim sobrevivência, os negros estavam todos juntos, mas ideologicamente todos não escapavam da separação feita pelos brancos em benéficio próprio. O mercado de venda de negros, tratando-os como produto, dentes fortes, músculos rígidos, separando famílias, silenciando a todos... Está tudo na tela.


   4)      Não existem brancos bons no período da escravidão: Nem no filme!!! Estão lá todos os traços da branquidade, estes mesmo acabaram de uma forma ou de outra passando e geração em geração... Os elogios surpresos dos brancos quando veem um negro se comportando de forma diferente da que eles tem na cabeça... A “bondade” de seus senhores, que leem o Evangelho  adaptando os escravos ao seu contexto, vendem o seu fiel empregado por conta de dívidas, vícios, faz dele um escravo sexual em troca de vantagens... Ou é cruel de forma direta; humilha, cospe, amedronta, espanca, chicoteia, engana, esfola, enforca, corta, estupra...

5)      A relação das mulheres brancas e as escravizadas negras:   Ponto alto do filme é reparar este ponto. O sistema escravocrata é um sistema onde os homens são senhores, mas há lugar também para a crueldade feminina. As mulheres brancas também cometem das suas. Tem um pequeno poder, mas sempre que podem usam dele para se livrar de algo que está as importunando ou ameaçando a estabilidade de sua família... A guerra entre brancas senhoras e negras escravas é vista em todos os detalhes, da forma mais diabólica possível!

6)      O silencio: enfim, um produto sobre escravidão onde os gritos não são gratuitos!!! Sim, existe alguém que não faz das agruras negras um estandarte para exercício a paciência do público. Aqui quase não há gritos e sim o seu total contrário. A escravidão exigia de seus trabalhadores o silencio absoluto. Nada de falar, nada de levantar a cabeça, nada de ler, escrever, opinar. Se sofrer, sofra calado, nada pode tirar a tranquilidade do seu senhor e de sua família. Você é um produto e um produto não fala. NADA.

7)      Lupita Nyong’o: modelo e atriz. Ganhadora do Oscar de Coadjuvante e de outros inúmeros prêmios. Intepretação majestosa. Quando entra brilha, com poucas palavras e um corpo que mostra em detalhes o sofrimento para a plateia. Ela é agonia, tristeza, leveza, solidão, explosão...

8)      O roteiro em 3° pessoa: Ao contrário do livro, o filme não conta a história na perspectiva do personagem principal. A escolha do roteirista foi certeira, pois dessa forma, ele pode dar abertura para fatos históricos que não são tão bem trabalhados no livro. Além de desenvolver mais personagens...

9)      O elenco feminino: personagens femininos bons, bem escritos, bem interpretados, desesperadores, cada uma a seu tempo. Cada uma com uma complexidade exposta em tão poucas falas. O nome disso é talento!!!!!

10)   Não é um filme dramático: não há musica subindo nos momentos de emoção do filme, o diretor não quer compadecimento de ninguém, nem dos personagens, nem da plateia. Não existem falas de efeito moral. Ou planos sequencia onde alguém tem uma mensagem a dizer. Não há leveza, não existem piadas, poucos sorrisos. Afinal, estamos falando de escravidão!

11)   Sequencias de tirar o folego: as cenas mais bem filmadas são as em que enquanto alguns escravos recebem castigos de seus senhores, outros são obrigados a levarem sua vida como se nada estivesse acontecendo... É a escravidão mostrada sem cortes. O sistema separa e amedronta, tanto que não existe momentos de compaixão, nem de cooperação. Ele está sendo castigado, eu não! E tenho mais o que fazer...

12)   O negro como papel sexual: Eis um fator que os brancos não se esqueceram e continuam a reverberar mesmo com o fim da escravidão. Senhores não só possuem o corpo dos negros, como mão de obra, mas também são proprietários de seu sexo. As cenas que falam/mostram este quesito são feitas com maestria. Destaque para a cena do chá com Patsey...

13)   O filme é obrigatório na grade curricular dos colégios dos EUA: Sim, 12 Anos de Escravidão é tao importante para nossa geração, assim como Malcolm X de Spike Lee foi no começo da década de 90!

  14)   Este é apenas o terceiro filme de Steve Mcqueen: E ele já consolida seu nome como homem seguro que é no comando de uma produção, de época, com elenco grandioso, conduzindo seus atores em caminho correto, filmando de forma sublime e dando tempo para que cada história seja contada da forma certa.

  15)   Você nunca viu um filme como este: Esqueça Amistad e todo e qualquer filme que viu sobre escravidão. Faça um favor a você e apague estes filmes da sua memória.  A visão de Mcqueen é definitiva, não só pela sua frieza, mas também pelo ótimo trabalho de roteirização. Todos os subterfúgios clichês que vemos em vários filmes com esa temática, aqui desaparecem...


   16)   Ao final do filme, o silencio. Se ele é o ponto alto de quase todas as cenas deste filme incrível, a saída do cinema é igualmente impactada pelo silencio da palteia, que sai em choque. Vi o filme acompanhado por uma plateia em quase sua totalidade de pessoas brancas. Como não há escapatória para os brancos neste filme, a maioria do cinema saiu quieta. Não existia personagem branco para que eles se identificassem. Não existe isso em um sistema trabalhista onde o castigo, o medo, a violência imperam. 12 Anos de Escravidão é um filme essencial. Para todos!